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Não Vou Cantar Não, Senhora

Um conto sobre escolha de repertório, carnaval e identidade.

A professora Fabiana e a pianista Cristiana trabalham numa entidade socioeducativa feminina, onde planejaram a realização de um programa com músicas dentro do tema de carnaval. Depois de conhecer o grupo, apresentaram o repertório à turma. Quase que imediatamente algumas cantoras se recusaram a cantá-lo, por desconhecerem as canções ou acharem que atraíam “coisas ruins”, segundo elas. Nessa situação as educadoras precisam decidir se permanecem com as mesmas músicas ou mudam tudo o que planejaram para o repertório.

 

 

Em fevereiro de 2020, mês do carnaval, o centro feminino provisório estava decorado para a data, com muitas cores, fitas de crepom, máscaras de papel penduradas pelas salas e algumas letras de marchinhas escritas nas lousas. Mesmo privadas da liberdade, a festa não deixaria de acontecer para as internas. Conforme foi combinado com a unidade, Fabiana, educadora de Canto Coral e Timóteo, educador de percussão escolheram algumas músicas carnavalescas que poderiam compor o repertório daquele ano, sendo uma samba enredo chamado É Hoje, da União da Ilha do Governador, um frevo do Zé Ramalho intitulado Frevo Mulher e uma série de maracatus do bloco Estrela Brilhante do Recife.

 

Ainda era verão e as aulas aconteciam numa sala quadrada muito pequena e quente, de cor lilás e com diversas figuras rítmicas desenhadas. Tem duas grandes janelas claras, mas que não possibilitam que quem está dentro da sala enxergue quem está fora e vice-versa, além da própria grade externa que protege esta janela. No lado oposto, fica a lousa, onde Fabiana e a pianista Cristina se posicionam.

 

No horário combinado, as alunas entram em fila, com as mãos para trás e a cabeça levantada. — Licença, senhora.

Fabiana e Cristina respondem:

 

— Boa tarde gente!

 

Outras passam reto e nem olham pra elas. Fabiana diz:

 

— Pô, galera fica rica e nem cumprimenta mais os pobre!

 

Meio sem graça, dão boa tarde e depois de todas acomodadas em cadeiras universitárias encostadas nas paredes e da chamada feita pelo funcionário da pedagogia para conferir que todas estão na aula, começam as apresentações da equipe.

 

-Boa tarde de novo gente!

 

-Boa tarde senhora!

 

-Eu sou Fabiana, educadora de canto coral. Eu trabalho aqui e em outras unidades masculinas e femininas.

 

-Eu sou Cristina, trabalho aqui com a prof. Fabiana e outros educadores sempre tocando piano. É muito bom estar aqui com vocês.

 

Em seguida, Fabiana pediu para que elas se apresentassem, dizendo o nome, idade e de onde vinham. Depois de conhecer o grupo, Fabiana apresentou o projeto musical do mês e perguntou o que elas conheciam sobre o carnaval e como comemoravam.

 

-Senhora, eu faço parte de uma escola de samba! Eu sou passista! - disse Laura.

 

-Nossa, que da hora! Conta um pouco mais.

 

Ai gente, é muito lindo! Eu tinha que ficar um tempão em cima do salto, sambando e sorrindo, nossa é muito bom. Se eu não estivesse aqui, estaria nos ensaios. -Ah, então você vai gostar, vamos ter um samba-enredo no nosso repertório.

 

-Ai senhora, que saudade! Tem que cantar a música durante todo o desfile, a gente aparece na televisão, minha roupa é toda brilhante. Eu fico toda linda.

 

-Professora, o bom do carnaval é o baile. - disse Antônia

 

-Baile funk?

 

-Opa senhora! Vai uma semana só de baile! - Antônia respondeu apontando os dedos indicadores pra cima, uma coreografia típica dos bailes.

 

Fabiana e Cristina apresentaram todas as músicas do repertório num tocador pelo pen drive e perguntaram se elas conheciam o frevo. Adriana falou:

 

-Eu já fiz na escola professora, usei uma saia bem colorida e tive que dançar na frente da escola toda, mó vergonha.

 

-Vergonha nada pô, é uma dança super difícil, deve ter sido bem legal.

 

-Foi legal sim senhora, eu era bem pequena.

 

-E aquilo queima a perna que é uma beleza. Fica com as pernas fortes e bem torneadas. Em Pernambuco as pessoas dançam subindo ladeira ao sol de mais de 40 graus.

 

As meninas já se animaram:

 

-Já pensou gente? Nossa, eu não aguento, mas as pernas ficam como? Daquele jeito!

 

A educadora iniciou pelo refrão de Frevo Mulher por ser mais simples e que todas pudessem cantar com mais rapidez.

 

-Ai senhora, essa música é muito estranha e difícil, não dá pra entender nada do que ela está falando.

Fabiana percebeu que a tonalidade estava muito aguda e pediu para a pianista abaixar alguns tons para ficar mais cômodo para todas e que as vozes delas pudessem brilhar ainda assim.

 

Elas ficaram mais à vontade com a nova tonalidade, mas ainda assim acharam estranho toda aquela letra. Fabiana disse:

 

-É verdade, sendo uma música do Zé Ramalho, o compositor, a pessoa que escreveu essa música, não é muito simples saber do que exatamente ela está falando. Mas vocês estão cantando ela muito mais devagar do que ela é. Quanto mais rápido a gente conseguir cantar, mais rápido ela termina e com mais cara de frevo também.

 

Por sentir que elas iam reclamar de tentar esta música, Fabiana e Cristina fizeram por partes com melodias semelhantes. Ela cantava duas vezes e o grupo cantava a terceira com ela. Já na quarta vez, iam sem a ajuda da educadora.

 

As meninas começaram a achar estranho porque a música estava repartida e já a ponto de se cansarem de repetir, deixando tudo mais sem sentido do que a letra já é por si só. Então Fabiana pediu:

 

-Agora vocês já sabem ela inteira, só juntar as partes e fazer do começo ao fim. Vamos juntas?

 

-Vamos senhora, pelo menos a gente para com essa música.

 

Mesmo inventando alguns trechos e a afinação caindo um pouco, cantaram a música inteira duas vezes, o importante era fazê-las experimentar fazer a peça do começo ao fim. Elas não se agradaram muito por não conhecerem, mas fizeram.

 

No outro encontro, na mesma semana, o grupo ouviu a música É Hoje e Fabiana brincou:

 

-Pelo menos vamos cantar talvez só duas vezes, no desfile os caras precisam cantar a mesma música por mó cota. Aqui vai ser rapidinho, vai por mim.

 

Mas nesta música o problema não foi apenas o tamanho dela, mas algumas palavras de religiões de matriz africanas e sincretismo religioso como os termos patuá, mãe de santo e mau olhado.

 

-Ai senhora, eu sou evangélica, não posso ficar cantando essas coisas aí que atraem coisa ruim. - disse Antônia.

 

-Quais coisas?

 

-Esses negócios aí de macumba. Isso atrai coisa ruim. Não tem uma música que fale de Deus?

 

-Se você tiver uma música gospel de carnaval pra indicar, nós faremos com o maior prazer.

 

-Ah, é só carnaval?

 

-Sim gente, eu falei pra vocês. - disse Fabiana já impaciente, mas lembrando que mesmo repetindo várias vezes a temática do mês, elas não entendem porque outras músicas não podem ser inclusas.

 

Fabiana tentou contornar a situação:

 

-Pessoal, isso é uma questão de fé. Se você não segue ou acredita, não tem porque achar que vai te fazer mal. Eu sou evangélica, a prof. Cristina também e não temos problema em cantar essas músicas.

 

Não teve muito jeito neste momento, Antônia e mais duas meninas ficaram irredutíveis, não iam cantar estes trechos. Mais pra frente, Fabiana lembrou de fazer um comentário:

 

-Gente, a gente precisa ter cuidado pra não agir com racismo e intolerância religiosa por causa dessas palavras. Não é desse jeito que as coisas funcionam.

 

Laura afirmou:

 

-Eu não vou cantar essa música, senhora.

 

Com o passar de duas aulas, aos poucos e com alguns vazios de letra, as meninas foram cantando o samba-enredo. Foi uma música difícil de montar e organizar por ser grande, uma prosódia que não era óbvia e a falta de familiaridade da turma com a levada de samba deixou o trabalho mais complexo. Mas sem Fabiana precisar falar nada e nem desistir, elas foram cantando a música e se divertindo com ela, conquistando um pequeno trecho por vez. Aquelas que não cantavam o que consideravam inadequado começaram a cantar baixinho, mas participaram.


-Olha só como está mais bonito gente! A gente não precisa fazer a música inteira de uma vez, se um trechinho já está bom, é uma mega conquista pra todo mundo.

 

-Ai senhora, até eu que gosto de samba enredo, mas não estou gostando mais dessa música. - disse Laura.

Antônia percebeu que só ela não estava cantando e foi tomando coragem para pronunciar as palavras que ela considerava inadequada. Começou a cantar disfarçadamente, mas Fabiana não comentou nada para que a aluna não voltasse a se fechar.

 

Quando chegou o momento do maracatu, Raíssa disse que já tinha participado de uma apresentação de maracatu:

 

-Ah, eu sei o que é senhora. Já fizemos uma vez nas atividades depois da escola lá no mundão.

 

A educadora apresentou o Maracatu Estrela Brilhante do Recife para elas, a batida do baque virado e os personagens que faziam parte da celebração. Ao ouvirem as gravações originais, acharam as vozes de peito engraçadas, mas se identificaram com as melodias e a percussão.

 

Foi quando começou a polêmica outra vez:

 

-Ai senhora, lá vem a senhora de novo com essas coisas aqui. Eu não gosto. E tem também essas batidas de macumba. - disse Antônia.

 

-Quais coisas? Do que vocês estão falando? E macumba é um instrumento, acho que não tá tocando nenhuma macumba nessas músicas.

 

-Ah senhora, você sabe. Essas palavras aqui, eu prefiro nem falar, vai que atrai coisa ruim.

 

A letra no caso era:

 

Dança a rainha, vassalo e escravo Todos os lanceiros e a corte real

 

Fabiana sentiu a necessidade de perguntar:

 

-Vocês sabem o que é rainha? Lembrem que essa celebração imita a realeza.

 

-Rainha é rainha né senhora? - elas responderam.

 

-Vassalo vocês já ouviram falar?

 

-Não sei o que é senhora, nunca ouvi falar. - disse Antônia.

 

-Vassalo é um empregado, chão de fábrica.

 

-E escravo nóis sabe senhora!

 

-Aí, o que tem de problema nestas letras?

 

Por se identificarem com a levada da música, elas entenderam rapidamente as canções e cantavam a plenos pulmões e bem alegres. A questão da rainha, do vassalo e do escravo foram resolvidas entre elas mesmas, porque Antônia se mostrou contrariada, mas se rendeu aos maracatus. A educadora percebeu, mas mais uma vez não comentou nada com

Antônia.

 

Fabiana então precisou fazer a revisão de todo o repertório alguns dias antes da apresentação e percebeu que Antônia e toda a turma, mesmo com dificuldades técnicas, cantaram todo o repertório e sem reclamações sobre as letras.

Para refletir

A regente montou um repertório que encontrou barreiras culturais, religiosas e de identidade, além da falta de motivação das participantes. Mesmo assim insistiu com aquelas peças. Ela deveria ter persistido com aquelas músicas ou mudado o repertório? Mesmo que seja estranho inicialmente aos cantores, como apresentar um novo repertório sem ofendê-los ou distanciá-los? Como perceber quando a resistência por parte deles dificilmente será vencida?  

Ainda sobre essa história: 

 

  1. Fabiana deveria ter persistido com a música? Por que?

  2. Antônia está defendendo a sua fé e identidade ou apenas testando os limites da educadora?

  3. O que vale mais nesta situação: o refino técnico ou a participação da maioria do grupo?

Para saber mais

Repertório

COSTA, Patricia. Coro Juvenil: por uma abordagem diferenciada. 2009. 129 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Música, Unirio, Rio de Janeiro, 2009.

ANDRADE, Débora; GABORIM-MOREIRA, Ana Lúcia (org.). Canto Coral Infantojuvenil: reflexões e ações. [Livro eletrônico]. São João Del-Rei: Mosaico Produções Gráficas e Editora Ltda, 2020

Música e identidade no contexto socioeducativo

Costa, Cláudia Regina Brandão Sampaio Fernandes da et al. Música e transformação no contexto da medida socioeducativa de internação. Psicologia: Ciência e Profissão [online]. 2011, v. 31, n. 4, pp. 840-855. 

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