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Composição

Duas experiências: de composição e exposição, o protagonismo artístico dos cantores.

O obra de Paulo Freire revela a importância do protagonismo dos alunos no processo de aprendizagem em sala de aula, colocando em pauta o repertório cultural que cada pessoa traz consigo, e sugerindo  que a partir daí se desenvolvam os assuntos trabalhados nas aulas. No canto coral juvenil, trata com indivíduos em época de descobertas e afirmação da própria identidade, sendo imprescindível que os jovens se identifiquem com o que cantam.

 

A regente Angela trabalha com um coro juvenil no contraturno escolar com um grupo bem engajado e participativo nos processos artísticos e pedagógicos. Um dia, viu uma agitação diferente da turma. Quando perguntou o que se passava, as cantoras informaram que uma de suas colegas colegas tinha escrito uma música. Como Angela lidou com isso? Havia um ambiente seguro para que a cantora mostrasse a própria composição?

 

 

 

Angela é regente do coral do Ensino Médio, com adolescentes entre 15 e 18 anos que se inscreveram para a atividade oferecida pela escola, no contraturno. O grupo é bastante participativo, gosta de sugerir repertório, aquecimentos vocais e é unido, mesmo sendo os cantores de turmas diferentes.

 

Certo dia, parte do coral estava muito agitada e falando muito. Angela quis saber:

 

-Gente, o que foi agora?

 

-Professora, a Rita escreveu uma música! Fala pra ela cantar pra todo mundo.

 

-Ah é? Que legal, Rita!

 

-É mentira deles, professora. Eu não escrevi nada não.

 

-Deixa de mentir, você escreveu sim. - disse Antônio

 

-Você compôs ou não?

 

-Ela escreveu sim! Canta aí, Rita. Você passa o dia cantando isso pra gente.

Rita cutucava o colega pedindo para que ele parasse, mas Antônio estava disposto a mostrar o novo talento da companheira.

 

-Então compartilha com a gente, Rita. - disse Angela.

 

-Não professora, não vou cantar na frente de todo mundo não. Sozinha ainda? Não mesmo.

 

-Quer dizer que você realmente tem uma música, hein?

Rita deu um sorriso de canto e olhou para o chão.

 

-Então, o que você acha de ir tomando coragem durante o ensaio e lá pro finalzinho você compartilha com a gente? Pode ser?

 

-Pode ser, prof.

 

Angela continuou o ensaio programado, inclusive falou sobre a música Talismã que estava no repertório e foi composto pela intérprete da canção original, que era a Iza. Também explicou que nem todo intérprete compõe a própria música, tendo que pagar direitos autorais para o dono da composição.

 

-O compositor ganha dinheiro, professora? - perguntou Rita.

 

-Sim. Não é um rio de dinheiro, mas cada vez que toca num comercial ou alguém grava e vai ganhar dinheiro em cima disso, cai alguma coisa lá na conta do compositor. Sabe a música Fico Assim Sem Você, do Claudinho e Buchecha?

-Ah sim, a gente fez no ano passado, né? - disse Antônio.

 

-Isso mesmo. Ela é do Claudinho e Buchecha e sempre é usada em datas comemorativas, como Dia das Mães, dos Namorados etc. Então, cada vez que toca no comercial, o Buchecha e a família do Claudinho recebem por isso.

 

-Aí Rita! Já pensou? Dá pra viver disso aí!

 

-Ai, cala a boca Carlos! Não falou nada até agora e já tá pensando no dinheiro que eu vou ganhar?

 

-Só não esquece que sou seu amigo.

 

-Como vocês são interesseiros! - disse Angela.

 

O coral continuou o ensaio com mais duas músicas e Angela encaminhou para o final.

 

-Rita, como a gente combinou, compartilha a sua música.

 

Rita olhava para o chão, mordia os lábios e começou a secar as mãos no uniforme.

 

-Ai profe…ai nossa…

 

-Que estilo que é?

 

-É um funk, professora.

 

-Que legal! Põe na roda essa música. E é sobre o que?

 

-É sobre sonhos. Eu compus já faz um tempo, mas só depois que entrei no coral eu tive coragem de mostrar para algumas pessoas. Eu escrevi quando o meu avô morreu, a gente era muito apegado e ele me incentivava muito.

 

-Puxa, sinto muito! Quando você quiser, apresenta pra gente.

 

-Ai, mas com todo mundo me olhando? - ela olhava para a sala toda.

 

-Vamos fazer assim: ninguém fica encarando a Rita. Vocês já veem a carinha linda dela todos os dias. Todo mundo olhando pra qualquer lugar, menos pra ela. Pode ser?

 

-Pode ser! Pode ser! - o coral concordou e olhou para o chão.

 

Rita se abanou, colocou as mãos no rosto, sacudiu as mãos e falou várias vezes pra si mesma: certo, tá, vamos…

 

Finalmente Rita, de olhos fechados, apresentou a música para o grupo. O coral a aplaudiu, assobiou e elogiou a letra e a voz dela.

 

-Ai professora! Eu falei que ela tinha uma música! - disse Antônio.

 

-Que música linda, Rita! O que você acha de colocar no nosso repertório? Podemos?

 

-Nossa, podemos sim! E dá pra fazer?

 

-Claro que dá, é só você ensinar a gente e também criamos um acompanhamento no teclado e de percussão. E aí? Rola?

 

-Sim! Eu vou trazer escrito pra senhora, pra ficar mais fácil.

 

-Fechou então. Não esquece!

 

Enquanto Angela se despedia e guardava os materiais, ouviu alguns cantando o refrão: não deixe de sonhar, não deixe de acreditar, não deixe de sonhar e você vai conquistar.

A adolescência é uma fase em que a pessoa começa a saber mais sobre si mesma. É quando diversas inseguranças e questionamentos surgem. Angela percebeu isso e lidou com a situação. Então temos as seguintes reflexões:

  1. Será que Rita apresentaria sua própria composição sem o apoio da professora?

  2. Como o ensaio de um coro pode ajudar cantores a lidar com questões próprias dessa faixa etária? E como pode atrapalhar?

  3. A composição não foi apresentada de um modo tradicional, ou seja, escrita numa partitura. Em que situações o uso de notação musical ajuda o processo de ensaio? Quando a partitura não é necessária?

Para saber mais

Composições de alunos

SCHAFER, Murray. O Ouvido Pensante. 2. ed. São Paulo: Unesp, 2011. Tradução de Marisa Trench de O. Fonterrada, Magda R. Gomes da Silva, Maria Lúcia Pascoal.

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