Entre Muros e Trancas
Um conto sobre entrevista de emprego e o Canto Coral num ambiente com muitas restrições.
Algumas pessoas consideram a música como algo supérfluo ou somente para o lazer, o que leva a muitos educadores musicais atuarem em condições ruins, como grandes cargas horárias com baixa remuneração, ser polivalente em música e não ter registro de trabalho. Renata era uma dessas profissionais, com formação em regência coral e tendo como segundo instrumento a flauta transversal, precisava dar muitas aulas particulares para conseguir manter o orçamento e não se sentia realizada, pois queria estar à frente de coros e com estabilidade trabalhista.
A educadora se candidatou para uma vaga num centro socioeducativo procurando não apenas um emprego registrado como também a possibilidade de atuar na área que mais gostava: o canto coral. Chegando lá, recebeu diversas informações sobre este campo de trabalho e as dificuldades em atuar neste tipo de ambiente não muito tradicional. Será que os conhecimentos em regência coral foram o suficiente? E como ela se saiu na entrevista?
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Renata era professora de flauta transversal em escolas de música privadas e públicas fora da própria cidade, com musicalização para crianças pela prefeitura e também regente de corais. Com tantos pequenos trabalhos em diferentes lugares, o que era muito cansativo, pois o deslocamento e burocracias eram bem desgastantes, queria se dedicar exclusivamente ao Canto Coral e com garantia de direitos trabalhistas, o que era impossível na realidade em que se encontrava.
No município de Renata havia uma empresa já consolidada em iniciativas socioculturais em música para crianças e adolescentes em diversos contextos sociais, inclusive em entidades para adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas, local que gostaria de trabalhar como regente. A empresa era famosa por promover grandes apresentações com estes jovens, o que motivava ainda mais a professora querer fazer parte deste trabalho.
Por ler diversos livros sobre a temática carcerária e medidas socioeducativas, a professora tentava acompanhar por reportagens as transformações das unidades socioeducativas desde a desativação das FEBEMs (Fundação do Bem Estar do Menor), em 2006. Ela já tinha ouvido falar de outros colegas da educação básica sobre como esses locais eram férteis para desenvolver projetos educacionais com abordagens mais críticas e respeito dos jovens com os professores. Sentia que era um campo para ela.
Certo dia, um velho amigo da faculdade de Renata a avisou sobre uma oportunidade de trabalho para educador de Canto Coral em entidade para adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa perto de onde morava. Ela olhou no site e viu que tinha os pré-requisitos exigidos para concorrer à vaga e o melhor: a contratação era CLT, o que procurava há tempos nesta área. Não pensou duas vezes e se inscreveu para a vaga.
A professora ainda dava muitas aulas de flauta e quase tinha esquecido da sua inscrição quando foi chamada para a entrevista. Acordou confiante no dia marcado e disposta a dar o melhor para conseguir aquela vaga.
Quando chegou ao local combinado, viu que era mais simples do que imaginava: uma sobreloja, com quatro salas pequenas, na qual reuniram todos os 7 candidatos em volta de uma grande mesa. Alguns Renata conhecia de outros grandes projetos da Prefeitura.
Deu início à entrevista:
-Eu sou Luana, assistente social, sou responsável por acompanhar as aulas e fazer atividades extra musicais com os alunos. Vou explicar um pouco o público que trabalhamos: nas unidades socioeducativas, os adolescentes são privados somente da liberdade, tendo os outros direitos assegurados pelo ECA, como escola, saúde, esportes e cultura. Além do apoio religioso, que não é obrigatório. - explicou.
-Eu sou Daniel, coordenador de Canto Coral e esta vaga é para educador de Canto Coral num centro de internação masculino, com adolescentes entre 15 e 21 anos. Alguém já trabalhou ou conhece um pouco esse público?
-Eu já ouvi falar de adolescentes sofrendo com de abstinência que até raspavam a parede para cheirar o cimento. - um dos candidatos respondeu.
-Minha mãe é professora na rede estadual e comentou que já teve alguns alunos na turma que faziam parte de alguma unidade, mas não sei dizer como eles estavam na escola. Ela fala que precisava ter muito cuidado para que eles pudessem aproveitar melhor as aulas. - disse Renata.
Os coordenadores ouviram essas duas respostas, não houveram mais contribuições, então seguiram para a próxima etapa:
-Agora vamos conversar individualmente com cada pessoa, tá bom? Vocês podem sair da sala, pode ficar só o André, vamos chamar por ordem alfabética.
Renata ficou nervosa com esse momento, o que falaria? Será que iam gostar dela? E ainda seria uma das últimas a ser chamada. Durante a conversa individual com André, deu para ouvir o teclado sendo tocado e isso a deixou muito ansiosa, já que não tocava tão bem.
-E agora? O que vão me pedir? - ela pensou.
Por ser uma das últimas na ordem alfabética, Renata chegou na sala disposta a mostrar um pouco sobre ela mesma. Daniel perguntou:
-Como a gente já falou, a vaga é para um centro masculino, que repertório você faria?
-Primeiro perguntando o que eles gostariam de cantar, eu sigo o Paulo Freire quando ele fala que os alunos não são pessoas vazias, mas cheias de suas culturas e conhecimentos. A partir daí, podemos fazer uma troca interessante de músicas com eles.
-Pode ser que eles peçam funks e músicas que não são muito comuns na nossa formação. Tudo bem pra você? O que você faria se te pedissem um funk que deprecie a mulher? - disse o coordenador de Canto Coral, Daniel.
-Não tenho problema em cantar funk. Também é música. Se for uma letra muito depreciativa, eu tento trazer pra realidade dos alunos, comparando com as outras mulheres da vida deles, como a irmã e mãe deles. Acho que eles não gostariam que falassem desse modo com elas.
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-Certo, é por aí mesmo o caminho. Você vai trabalhar com uma pianista que está com a turma atualmente, mas pode ser que você precise tocar em algum momento. Você toca?
-Sim. Eu toco bem as linhas melódicas porque trabalho com coro há algum tempo e tiro as melodias de ouvido com facilidade, mas para tocar o acompanhamento, preciso ter a cifra comigo, não tenho facilidade para harmonizar.
-Ah, eu também, com a cifra escrita eu vou que vou. Você pode tocar uma das músicas do nosso material didático?
Renata estava muito encantada em segurar aquele livro e pediu autorização para folhear um pouco, tanto que quase se perdeu olhando as músicas. Daniel pediu de uma vez:
-Escolhe uma música, toca e canta pra gente?
Renata errou na primeira vez, tinham muitas notas repetidas. Contou uma por uma, tocou e cantou cerca de três linhas. Até que interromperam, já era o bastante.
-Você faz vocalises?
-Faço sim, com as crianças eu gosto de brincar com vibração de língua ou lábio imitando uma montanha russa ou outras frases do cotidiano.
-Está certo então Renata. Nós vamos entrar em contato, muito obrigada por vir. - disseram Daniel e Luana.
Renata saiu com a cabeça preocupada em chegar para o outro trabalho e pensando se tinha respondido de modo correto e passado confiança sobre a sua atuação. Quando já achava que tinham contratado outra pessoa, depois de quatro semanas recebeu a ligação dizendo que tinha sido escolhida para a vaga. Ela ficou extasiada: conquistou o trabalho que sonhava naquela empresa tão prestigiada, poderia trabalhar com o público que gostava, queria proporcionar a autonomia do aluno e construir grandes projetos com eles. Além dos direitos trabalhistas que precisava naquele momento. Deixou as aulas nas escolas de música para dedicar mais tempo às novas responsabilidades: música a duas vozes? Ensino de partitura? Precisava se atualizar com aquecimentos vocais.
Depois de tudo certo com a documentação para a contratação, Daniel levou Renata para conhecer o trabalho de um regente de Canto Coral em uma entidade provisória masculina. Ela viu o que encontraria em breve: muralhas altas e largas com concertinas no topo, acessos do tipo gaiola, portas de ferro e muitos cadeados. Os corredores eram frios e partiam de uma escada central, onde não se podia circular com mochilas, celulares ou outros eletrônicos.
Renata assistiu a primeira aula, onde os meninos estavam sentados em semicírculo ao redor do regente e da pianista. Todos eles com o mesmo uniforme e cortes de cabelo, meninos em sua maioria negros, altos e magros. O grupo cantava Só os Loucos Sabem, do Charlie Brown Jr., com o professor provocando algumas reflexões com eles. Renata pensou:
-É exatamente isso que eu queria. Músicas que façam sentido, que o grupo possa debater! Que coisa linda o engajamento deles.
Ao final da aula, ela conheceu os novos colegas:
-Renata, estes são Roberto e Elaine. Eles trabalham com projetos de 5 aulas, porque aqui é um centro provisório e a rotatividade é muito grande. Tudo precisa ser rápido. A primeira aula ele define o tema com os jovens, nas próximas três ensaiam as músicas e na quinta aula, realizam uma apresentação. - explicou Daniel.
-Cinco aulas? É pouco tempo! E estes meninos vão embora depois disso?
-Sim. Eles podem ir para a internação, que é a unidade que você vai trabalhar, ou podem ir pra casa em liberdade ou liberdade assistida. Você vai ter de dois a dois meses e meio de trabalho com os meninos, depois muda toda a turma. Porque a medida socioeducativa dura de 3 meses a 3 anos, então a gente fica pouco tempo com eles.
Retornando da aula de Roberto, Daniel perguntou:
-O que você planeja para a primeira aula?
-Preparei algumas canções folclóricas e uma música de Dominguinhos. Tem como fazer a cópia das partituras em algum lugar?
-Mas Renata, a gente não usa partitura lá. Eles vão dizer desse jeito, vou imitar: ‘ah senhora, nóis não sabe ler essas coisa não!’ Pode levar só as letras, mas primeiro conhece o grupo, ainda falta conhecer a Silvana, a pianista, vê o que ela já está fazendo com eles.
Depois de assistir a aula de Roberto, imaginou como seria o seu grande dia, que finalmente tinha chegado. Sabia que Daniel a acompanharia, era o momento de mostrar que merecia estar naquele cargo. Planejou fazer um aquecimento vocal, apresentação dos alunos e quem sabe começar uma música nova.
No dia do primeiro ensaio, chegou à unidade junto com o coordenador, que a apresentou à pianista:
-Esta é a Silvana, ficou com a turma todo esse tempo e é legal vocês entrarem juntas. Mostra para o coral que formam uma equipe e você pode ver o que eles tem feito juntos.
-Oi Silvana! Prazer te conhecer! Vamos lá!
Seguiram pelo corredor, que não era muito diferente daquele que tinha conhecido, com exceção da escadaria, já que ali tinha edificações térreas, mas ainda com o aspecto frio e gaiolas. Daniel apresentou Renata para a equipe de funcionários:
-Esta é Renata, a nova regente do Coral.
-Seja bem vinda Renata! - uma funcionária respondeu.
Silvana pegou um papel de comunicação oficial interna e explicou:
-A gente precisa escrever aqui tudo o que vamos usar na aula. Tudo o que entra, precisa sair. Então, 1 teclado, 1 fonte, 1 pedal, 1 bola e um suporte.
Os três se encaminharam ao acesso para, finalmente, entrar no pátio onde os adolescentes ficam. Os seguranças checaram o papel com a relação de materiais, revistaram o estojo do teclado e as educadoras e o supervisor. Estando tudo certo, entraram no pátio de convívio dos adolescentes.
Chegaram numa sala ampla, com pé direito bem alto e uma janela grande, onde os 15 alunos já estavam sentados encostados na parede quase formando um semicírculo, esperando pelas educadoras. Eles eram, assim como a outra turma, em sua maioria negros, franzinos e desconfiados daquela pessoa diferente que chegava na sala.
-Boa tarde meninos! Esta é a Renata, a nova professora. Ela vai trabalhar com a gente agora. - disse Silvana.
-Boa tarde, senhora. - eles responderam.
-Boa tarde gente! Eu sou a Renata, moro aqui perto e é um prazer estar com vocês.
-A gente pode fazer um aquecimento? Vamos fazer algumas formas geométricas com vibração de língua. - Renata fazia triângulos e retas no ar com o dedo, usando os desenhos para ilustrar a trajetória do som. Ela tinha aprendido que é mais musical fazer as propostas sem falar muito e o uso do corpo para ajudar.
Os adolescentes somente olharam, alguns com estranhamento e outros sem demonstrar qualquer reação, não deram bola para a proposta. Começaram a conversar entre si e ignoraram a educadora.
Renata se sentiu frustrada, achou que seria mais simples. Desistiu do aquecimento, pegou a bola e pediu que eles formassem uma roda e se apresentassem com o nome quando a bola fosse jogada para eles. Os adolescentes tomaram a iniciativa de falar também as idades e ela viu que eram mais velhos do que esperava: entre 16 e 19 anos.
Então, começou a jogar a bola falando o nome daquele que deveria receber. Não houve tantas rodadas, porque somente 7, entre 15, ficaram até o fim, mas demonstraram estar contentes com a proposta. Os outros, se afastaram da roda e observaram com curiosidade o que estava acontecendo.
Sorrindo, a educadora disse:
-Muito obrigada por aqueles que toparam. O que vocês estão cantando com a Silvana?
A pianista chamou os adolescentes e começou a música Caridade. Só alguns cantaram, mas se mostraram confiantes na
figura de Silvana, com quem conviviam há mais tempo. Renata não conhecia a música, mas ficou feliz em ouvir os jovens. Pensou: eles ainda estão desconfiados, mas esperava que seriam mais engajados e a receberia melhor. Viu que estava com um grande desafio de confiança e motivação nas mãos. Ficou preocupada em como fazer isso para o próximo encontro.
Renata e Silvana guardaram todo o material, conferiram cada item com o agente socioeducativo e se despediram dos alunos. A nova professora teria uma grande jornada pela frente.
Para refletir
Neste conto observamos uma educadora musical em busca de um trabalho com mais conforto e estabilidade, dentro da área de sua preferência: o canto coral. Depois de contratada, ela começou a perceber que questões extramusicais referentes ao ambiente, aos prazos e ao relacionamento com os alunos poderiam influir intensamente no seu trabalho musical e artístico, muitas vezes exigindo ações que não lhe eram habituais.
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Tal história provoca a seguinte reflexão: Até que ponto os regentes/educadores musicais tem sido flexíveis para equilibrar suas crenças e princípios com as exigências de determinado ambiente ou instituição que o emprega?
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Para saber mais
Carreira
Cibele Sabioni conversa com o regente Eduardo Nóbrega sobre a carreira de músico no canal Coro do Zero. Confira aqui.
Direitos da Criança e do Adolescente
Educação musical em entidades socioeducativas
CHIARINI, Caio Abreu. Educadores musicais, oficinas de música e adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de internação: experiência pedagógico musical na Fundação CASA (SP). 2017. 138 f. Dissertação (mestrado) – Curso de Música, Unesp, São Paulo, 2017
BRASIL. Lei Nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente.